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O João era um rapaz do campo.


Nascido e criado numa aldeia do interior, oriundo de uma família sem grandes posses, cedo teve de começar a trabalhar.
Na sua busca por trabalhos melhores, acabou por ir trabalhar para uma fábrica, perto de Coimbra. Arranjou também um quarto naquela região.
Um dia conheceu a Teresa num supermercado. Ela estava atrapalhada com sacos de compras e ele ajudou-a. Foram-se encontrando aqui e ali, passaram dos simples cumprimentos de cortesia a conversas um pouco mais elaboradas…
…e o João começou a ficar apaixonado por ela. Ela era uma mulher citadina, linda, descomplexada…
Um dia ele ganhou coragem e convidou-a para um café, depois para um jantar e uma ida ao cinema.
As coisas evoluíram normalmente e, um dia, ele fez a pergunta e ela disse sim.
Procuraram uma casa, mas ela não se contentava com qualquer coisa. Acabaram por encontrar uma vivenda cujo o pagamento ao banco, junto com o resto das previsíveis contas, podia bem ser suportado pelo ordenado de ambos.
Casaram, foram para a sua vivenda nos arredores de Coimbra e o João sentia-se o homem mais abençoado do mundo.
Falaram em filhos. Ambos queriam ter três e ela começou a sugerir que, se queriam pensar a sério no assunto, ela preferia ficar em casa e cuidar dos miúdos. Evitavam pagar a creches ou amas, além do beneficio de os miúdos poderem ser educados de uma maneira mais familiar.
O João concordou e arranjou um segundo emprego para poderem fazer face às despesas. O resultado foi que normalmente saia de casa às seis da manhã para entrar em casa por volta das dez da noite. Era puxadíssimo, ele andava arrasado, mas a sua família era tudo para si.
Um ano depois a Teresa anunciou finalmente que estava grávida, o que, para o João, foi a maior das alegrias. Fazia com que todo o seu esforço tivesse significado.
Não obstante, as coisas com a Teresa arrefeceram bastante. Ele atribuiu isso à gravidez e não deu importância. Mas, já depois de o Bruno nascer, as coisas continuaram iguais. O sexo era somente uma miragem, algo que acontecia raramente e nunca com grande entusiasmo da parte dela.
Como é óbvio, o plano para terem os três filhos não corria muito bem. Mas o João continuava a adorar e fazer tudo pela Teresa, sacrificando o seu corpo dia após dia para lhes proporcionar a ela e ao Bruno uma vida sem necessidades.
Quando o Bruno tinha seis anos havia algo que o preocupava, inquietava. Ele olhava para o Bruno e não reconhecia nada nele de parecido consigo, ou a sua família, assim como não via nada da Teresa, nem da sua família. Isto, aliado ao deserto afectivo em que a sua vida se tornara, começou a inquietar demónios nas profundezas da sua consciência.
Um dia, arranjou um kit de recolha de material genético e avançou para um teste de paternidade à criança. O teste, infelizmente, apenas confirmou a sua desconfiança. O Bruno não era seu filho.
Tudo isto foi demais para o pobre João. Resolveu falar com a Teresa. Começou por falar com ela acerca do deserto afectivo que era a sua vida conjunta.
A Teresa atirou-lhe à cara que se sentia sozinha, que ele nunca estava presente. O João nem queria acreditar. Perguntou-lhe se ela achava que ele tinha dois trabalhos por gosto, o que deu origem a uma discussão épica entre os dois em que ela o acusou de tudo e mais alguma coisa, inclusive de não se ralar com o Bruno.
E foi nesta altura que o João tirou o teste do bolso de trás das calças e, literalmente, lho atirou à cara.
A Teresa, quando viu o que era, ficou lívida. O seu tom mudou, de acusatório para apologético, desculpando-se com a sua solidão, que passava os dias triste e só… O João contrapôs que, na realidade, isto se tinha passado há pelo menos sete anos, logo no começo do casamento, pouco depois de ela ter deixado de trabalhar e ele começar a trabalhar em dobro.
Entre muitas desculpas ela acabou por confessar que o pai do Bruno era o filho mais velho de um casal vizinho, por esta altura com vinte e poucos anos, mas à altura um mero rapaz de dezoito ou dezanove anos e que era o desgosto dos pais, uma vez que parecia não querer tomar um rumo na vida, não trabalhava, não estudava e continuava a levar uma vida de príncipe à custa dos pais.
Os sonhos do João estavam desfeitos. Pediu o divorcio, mas nada fez em relação ao Bruno. Sempre o cuidara como seu filho e continuava a senti-lo como tal. A criança não tinha culpa alguma das asneiras da mãe.
Divorciaram-se. Ele não só pagava a pensão de alimentos como tinha de continuar a pagar a casa de família, uma vez que ela não tinha rendimentos, mas quando ela os viesse a ter, ainda assim teria de pagar uma parte.
Voltou para um quarto acanhado e, embora continuasse a castigar o corpo com dois trabalhos, vivia quase miseravelmente, uma vez que o dinheiro ia quase todo para aquele que ele considerava filho e para a ex-mulher.
E foi numa conversa telefónica com o Bruno que soube que a Teresa, não só tinha assumido a relação com o pai biológico, como ele agora vivia na sua casa, enquanto ele continuava a pagar por tudo.
Alguma coisa se partiu no fundo da sua alma.
No dia a seguir acordou tarde, não foi trabalhar. Levantou-se, fez a barba, cuidou-se, vestiu o seu melhor fato e dirigiu-se à sua antiga casa.
Foi recebido com maus modos pela Teresa e pelo seu amante, que tinha um perfeito ar de gozo com a situação. Como ele sabia, o Bruno não estava, era dia de escola.
Foi à cozinha, apanhou uma faca grande, degolou, de surpresa, o amante à frente da ex-mulher, agarrou-a ainda em choque e desferiu quantos golpes a sua raiva exigiu, largando-a depois numa poça ensanguentada no meio da sala.
Depois, subiu ao primeiro andar da vivenda, encheu a banheira, enfiou-se la dentro e cortou os pulsos. Como não queria que o Bruno desse com aquele cenário, quando estava quase a desfalecer, telefonou para o numero nacional de emergência e confessou o que tinha feito.
Depois, morreu.
No dia seguinte os jornais relatavam mais um caso de violência domestica sem sentido, e os comentadores e as redes sociais usavam o João como um exemplo da violência dos homens sobre as mulheres…

Comentários

  1. Foi usado, foi traído, foi pai de quem não era, um impulso deu cabo de vidas. Nada justifica isto. Nada

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    1. ...e no fim ainda foi vilipendiado pela opinião de quem não faz ideia do que se passou. Tudo necessita de um contexto. Se não se sabe o contexto…
      Agradeço em nome do autor

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